ENTRE DEVANEIOS E RISOS – Parte II – Por Leonardo Vieira Rodrigues – #temporadadetextos

O escritor Campos de Carvalho

CAMPOS DE CARVALHO E A CRÍTICA AO MODELO CIVILIZATÓRIO EM A LUA VEM DA ÁSIA

Observação:  a primeira parte desse texto foi publicada em outubro aqui no portal. Essa é a parte final. Na publicação anterior o conteúdo trazia a descrição da recepção da obra de Campos de Carvalho, e da influência do surrealismo em sua literatura. Já aqui temos uma análise teórica dos escritos de Carvalho com o intuito de mostrar a transgressão e crítica ao racionalismo institucional e a  moral da sociedade instrumental e neoliberal em que vivemos

Segunda parte:

      Campos de Carvalho assume o papel de poeta, pois, em seu ofício, convida os homens à autenticidade de sua existência, comunicando por meio da linguagem ficcional e poética, um modo genuíno e inaugural de enxergar o mundo. O sociólogo brasileiro Laymert Garcia dos Santos coopera com esta reflexão ao afirmar que “O poeta assume a responsabilidade de dizer” (SANTOS, Laymert Garcia dos, 1992, p. 194)4. Dizendo, a voz do poeta, bem como do escritor de literatura, negativa ou positivamente, anuncia e denuncia.

        Quanto ao posicionamento crítico sobre o surrealismo, as verificações apresentadas não significam sua supervalorização, considerando-o como o único movimento artístico de vanguarda na contemporaneidade, mas tentativas lúcidas de salientar sua importância. Assim, entendemos o surrealismo como um movimento entre outros vários, que buscava compreender sua época e criar outras possibilidades estéticas ainda não pensadas.

Nas poucas entrevistas que Campos de Carvalho concedeu ao longo da vida ele fazia questão de ressaltar que, em termos de literatura, o humor, presente em todos seus romances, é a essência de sua escrita. Em várias passagens de A lua vem da Ásia temos expressões que provocam o riso no leitor. Como no final do capítulo intitulado Capitulo Primeiro, em que Astrogildo comenta que aprenderá a tocar berimbau com o professor Herr Hepsteimm no Conservatório de Varsóvia.

        Buscando significados para o nome Herr Hepsteimm, ou senhor Hepsteimm – tendo em vista que Herr é o pronome de tratamento alemão equivalente a senhor na  língua portuguesa – não encontramos traduções literais. Contudo,

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4 Em O tempo mítico hoje (1992), Laymert Garcia dos Santos utiliza como artifício de sua reflexão o discurso do Pajé Davi Kopenawa Yanomami: diante da ação das mineradoras no território do seu povo, o pajé, em entrevista concedida ao antropólogo Bruce Albert, elabora o discurso profético apocalíptico, anunciando as conseqüências da exploração do minério, não apenas para o seu povo, mas para todos os povos. Por exploração do minério pode-se estender, simbolicamente, todas as ações tecnocráticas predatórias que buscam lucratividade. Neste contexto, Laymert compara o discurso do poeta ao discurso do pajé: ambos elaboram um discurso mítico, pois estão fora do tempo (fora do falatório do capital); não importa se seus discursos sejam descartáveis para os paradigmas atuais, ambos assumem a responsabilidade de dizer.

lançando-nos em empresas hermenêuticas percebemos que o prefixo Hep, aparenta-se com o substantivo inglês hip, cujo significado é quadril. Ora, o berimbau – no qual o senhor Hepsteimm era douto – é um instrumento de origem angolana, e tradicionalmente utilizado na Capoeira. Na Capoeira, um misto de arte marcial, dança e música, o quadril é uma parte do corpo fundamental para sua aplicação, tendo em vista a flexibilidade exigida do praticante. Todavia, o sufixo Steimm, que se assemelha ao substantivo alemão stein (pedra), vem gerar uma antinomia em que toda a maleabilidade da Capoeira é subjugada quando o professor do instrumento que dita seu ritmo tem um nome semelhante a senhor quadril de pedra, ou senhor quadril rígido, ou ainda senhor quadril duro. Tais aspectos, supostamente, mostram o humor tenaz em partes ínfimas do texto.

        Atendo-se ainda a esse trecho do texto, outros pontos inusitados compõem-se do humor de Campos de Carvalho. Primeiramente, o berimbau é um conhecido de maneira especial em Portugal e no Brasil, por serem países que tiveram maior contato com o povo angolano: o primeiro como colonizador e o segundo como receptor dos angolanos escravizados. Guardadas as devidas exceções, o restante da Europa não teve maior contato com aquele povo, menos ainda com os elementos de sua cultura. Assim, é debochado o fato de um professor, de possível origem alemã, dar aulas em um conservatório, local onde se ensina tradicionalmente música clássica, ou, quando muito, música popular local; conservatório esse localizado na Varsóvia, capital da Polônia. A passagem comentada é uma das várias passagens de A lua vem da Ásia em que o humor se faz presente.

       Observa-se que a função do humor na literatura e na poesia é deslocar a visão sobre certas coisas, para um olhar fora do comum. Na esfera do cômico, o riso é algo possível apenas nas relações socioculturais. Assim sendo, em O riso: ensaio sobre o significado do cômico, Henri Bergson (1993) acredita que “(…) não existe cômico fora do que é propriamente humano” (BERGSON, 1993, p. 18), pois, o cômico só acontece como consequência das atitudes humanas, ou seja, só terá projeção cômica em situações que tenham significação de algo que alguém viveu ou  percebeu. Mesmo quando um ser não humano é digno de riso, isso acontece, pois, sua característica cômica se assemelha a algo propriamente humano.

        Pensando outras perspectivas sobre o riso, em Rir por pura crueldade, Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa (2008), ao comentar sobre o cômico nas tragédias gregas, considera o riso como um dos elementos antropológicos significativos para a Grécia Ática. Posto isso, ela acredita que “O riso, na sociedade grega do período clássico, oscila entre a celebração da vida e a ostentação do culto ao antagonismo.” (BARBOSA, 2008, p. 91). Tal antagonismo se compõe da dupla face do riso: o amor e o ódio; tendo em vista que o bem que se deseja ao amigo a quem se ama provoca a alegria, enquanto ridicularizar os inimigos, expondo o ódio, também faz rir.

Nas duas citações, entendemos o riso como resultado de construções socioculturais de um povo, como parte atrelada ao caráter ficcional, ao entender que a ficção é uma construção unicamente humana, e, sobretudo, como ironia frente a situações aparentemente dicotômicas.

          Mas o mais instigante é a crítica à racionalidade das instituições e aos procedimentos de controle da sociedade, caracterizados por uma série de técnicas, discursos e procedimentos que vislumbram o controle político, cujo fim é a eficácia do exercício do poder, a manutenção da moral, e a submissão dos indivíduos a formas de saber. O caráter cômico de A lua vem da Ásia, desvencilha da rigidez da razão pelo motivo de o narrador priorizar a ausência de lógica, criando personagens divergentes aos padrões instituídos.

         Nesse mesmo sentido, o uso do humor como força crítica aos poderes é um fator determinante do Elogio da Loucura de Erasmo de Roterdã. Nesse texto, Erasmo (2011) tece críticas às instituições de seu tempo vestindo a máscara do bobo da corte. Esse personagem folclórico e cômico era, naquele contexto, um dos poucos que podiam se expressar sem sofrer retaliações, pelo fato de seus discursos e peripécias serem considerados ridículos e sem importância. Por meio dessa figura, Erasmo pode expor sua ironia contra as formas de poder de sua época, adquirindo certa liberdade crítica. Assim, tanto Campos de Carvalho como Erasmo de Roterdã foram, cada um ao seu modo, críticos da sociedade onde viveram. Porém, entendemos que eles não foram os únicos a ter tal postura. Podemos citar ainda     uma longa lista de autores que fazem do riso um instrumento de crítica, tais como: Rabelais, Swift, Sterne, Voltaire, Hume, Sade, Nietzsche, Lautreámont, Wilde, Sartre e Cioran; apenas alguns dos autores que não abriram mão de lançar críticas com conteúdo risível contra a sociedade em que viveram.

       Portanto, em suas várias vertentes, acreditamos que o humor foi e ainda é um importante meio de crítica ao modelo civilizatório, pois, em seu uso, pode-se deslocar a verdade institucionalizada e trazer outras visões da realidade a qual tentam descrever, visto que a racionalidade sempre reduz o seu objeto para ter uma descrição mais eficaz dos seus propósitos. Assim, acabam-se excluindo as coisas opostas as categorias de verdade, de moralidade e do bem.

      Campos de Carvalho explora em suas narrativas justamente as imagens opostas dos interditos do modelo civilizatório. Em sua literatura o surrealismo, a lógica nonsense, e o humor são aspectos fundamentais, e podem ser vistos como crítica à racionalidade e ao discurso institucional que afasta e exclui tudo o que não corresponde aos seus critérios. A literatura do escritor uberabense mostra que o riso é uma das possibilidades de questionar os desígnios da razão e seus juízos, provocando em seu leitor a visão do mundo num horizonte em que o interdito sai do reducionismo simplista e dicotômico entre bem e mal, mostrando que o universo humano é múltiplo e caótico, tal como a ordenação caótica típica da natureza.

 

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó SC: Argos, 2009.

BARBOSA, Tereza Virgínia Ribeiro. O cômico e o trágico. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2010.

BATELLA, Juva. Quem tem medo de Campos de Carvalho. Rio de Janeiro: 7

Letras, 2004.

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cômico. Lisboa:

Guimarães Editores, 1993.

BRETON, André. Manifestos do surrealismo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.

BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2010.

CARVALHO, Walter Campos de. Obra reunida. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. ___. Cartas de viagem e outras crônicas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê?. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2012.

GONZAGA, João Felipe. Um Resgate da Obra de Campos de Carvalho: o

Surrealismo e a Produção do Cômico. Dissertação (Mestrado em Letras). 2007. 142f. Faculdade de Letras, UFMG, Belo Horizonte, 2007.

PASSETI, Edson. Heterotopia, anarquismo e pirataria. In: RAGO, Margareth

(org.). Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976.

ROTERDÃ, Erasmo de. Elogio da loucura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

OLIVEIRA, Nelson de. Campos de Carvalho: o último satanista. 2001. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/ARC02CamposdeCarvalho>. Acesso em: 14 de fev. 2014

SANTOS, Laymert Garcia dos. O tempo mítico hoje. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 191-199.

Leonardo Vieira Rodrigues é Professor de Filosofia e História. Atualmente leciona em Guarulhos-SP para estudantes do Ensino Médio e Ensino Fundamental. É também pesquisador da Filosofia em temas como estética e política. É mestre em Estudos de Linguagem pelo CEFET-MG. No Facebook: leonardo.vieirarodrigues1

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