O texto proposto é uma continuidade de dois textos anteriores, e a discussão do tema se faz necessário por tratar de algo que atravessa a vida social e coletiva do século XXI. É nesse sentido que falaremos nesse texto sobre a necropolítica como parte fundamental da política capitalista. Pois, por via dela se faz a justificativa para ações violentas institucionais. Tal violência é resultado de um modelo de governabilidade em que se prioriza o enxugamento das finanças do Estado, e com isso, tem-se a retirada de políticas públicas voltadas para os mais pobres. É prevendo reações das classes menos favorecidas, os representantes do estado reforçam as forças de repressão da segurança pública, que agem usando força desproporcional contra os negros e pobres da periferia, e tais ações são legitimadas pelo aparelho estatal. Para assim defender as práticas dos princípios neoliberais. Nos textos anteriores falou-se sobre os meandros do fascismo, sendo que o primeiro tratou da idealização estética, e das suas peculiares formas de interpretar e vê o mundo. Já no segundo texto, analisou-se a sua forma de governabilidade e a questão do racismo de Estado. Nesse terceiro texto pensando dentro da sequência do tema iremos falar da política de morte dos pobres.
Para tratar do tema proposto, ressalva-se que ele está atrelado ao conceito de soberania, na qual se entende que uma instituição tem o poder de zelar sobre a vida dos cidadãos, e para isso quando necessário faz uso da violência, para a ‘manutenção’ da ordem institucional. Junto à soberania, e o biopoder (que é uma tecnologia de exercício de poder sobre a vida, exercida na prática da medicina via vacina, controle de natalidade e outros recursos, e o poder sobre a morte, nesse caso o racismo) são conceitos essenciais para a fundamentação da necropolítica. Ambos os conceitos serão destrinçados e aproveitados, na análise aferida na filosofia de Achille Mbembe. No entanto, é valido lembrar que no texto anterior foi enfatizado sobre a questão do racismo de Estado, cujo darwinismo social de Herbert Spencer foi fundamental para se justificar tal ideologia. Seja o neoliberalismo, ou no fascismo. Com o darwinismo de Spencer, têm-se um amparo e justificativa para naturalização das violências as minorias no estado fascista. É adjacente a isso, temos a tentativa do neoliberalismo de se colocar como prática que reflete a real essência do ‘humano’, com foco no individualismo. Porém, é válido ressaltar que qualquer prática é parte da construção do socius. Somos enquanto humanos um grande arremedo de fragmentos de tudo que vivenciamos. Em outras palavras o ser humano é o resultado daquilo que permeia a sua existência, ou seja, sua família, seus amigos, e suas relações coletivas em gerais, e os objetos que compõe suas atividades diárias. O indivíduo e a soma de tudo que viveu. Quero com isso refutar a insistente ideia de natureza essencial do humano, algo que para mim não existe, e qualquer tentativa de colocar modelos econômicos como conatural ao humano, é um erro conceito na perspectiva histórica.
O texto de Mbembe que trata do tema proposto intitulado Necropolítica (2018), começa com uma definição sintética, descrita assim: “Este ensaio pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande maioria, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer.” (MBEMBE, Achille, 2018, pág. 5). A breve passagem ressalta o papel da soberania, e da sua práxis enquanto Estado tem uma racionalidade que orienta e justifica suas ações. Segundo Norberto Bobbio ao definir o termo soberania, nos diz: “Em sentido lato, o conceito político-jurídico de Soberania indica o poder de mando de última instância, numa sociedade política e, consequentemente, a diferença entre esta e as demais associações humanas […]” (Bobbio, Norberto, 2005, pg.1179). Entende-se que a ideia de poder está relacionado à esfera política como mediadora de conflitos sociais e como instância que legitima as leis na esfera da democracia liberal. Ainda sobre a definição do termo: “A Soberania, enquanto poder de mando de última instância acha-se intimamente relacionada com a realidade primordial e essencial da política: a paz e a guerra.” (BOBBIO, Norberto, 2005, pg. 1180). O pleno exercício da soberania está relacionado à capacidade de criar condições de proteção e os mecanismos para ativação da laboração da vida. Isso inclui a questão da paz e da guerra, visto que a política é a realização da guerra por outros meios como diria Foucault em referência a teoria de Clausewitz. Mbembe na intenção de problematizar o devir morte na relação com a soberania, enfatiza a questão do biopoder, junto ao estado de exceção como procedimentos que orientam para efetivação da necropolítica. A combinação entre o exercício de poder sobre a vida, com o modo de governança em que estatuto político não reconhece os direitos indivíduos. Aliados ao extremo da desumanidade, quando normalizada é uma receita somada que dará na política de morte conceituada por Mbembe.
A concepção de vida após a experiência dos campos de concentração, no nazismo que em parte fundamenta os mecanismos a política do devir morte, só revelou a face encoberta do progresso da racionalidade instrumental. É, a capacidade dos humanos de desenvolver tipos diferentes de violência, seja ela simbólica, ou mesmo sobre o corpo. É na pior das hipóteses com extermínio daqueles que não tem o reconhecimento enquanto humano, e sim somente na sua condição animal.Dentro da História, houveram situações específicas como as pandemias, ou as crises econômicas que se mostravam cenários propícios para concretização para regimes de exceção. Nesse regime o domínio e controle sobre vida, em termos biológicos e da raça, se fizeram presente no nazismo, e no massacre aos armênios em 1915. Deve-se observar que os procedimentos desses modelos de governança dos regimes de exceção compõem a necropolítica. Junto a isso, os mecanismos de exclusão e controle como no caso, a escravização do século XVIII e XIX. O não-reconhecimento da condição humana dos negros na experiência dos Estados Unidos e no Brasil em suas respectivas escravizações, tornou-se uma espécie de laboratório e extensão para os procedimentos da política de morte no século XX, e agora no começo do XXI.
O não-reconhecimento da condição humana dos negros na escravidão teve sua produção ligada ao conceito de plantation, que é algo ligado ao estado de exceção. O reconhecimento somente na condição animal dos negros, junto à retirada destes do seu local de nascimento coloca-os numa vulnerabilidade, que é histórico, sobretudo quando se pensa na implementação do domínio do pensamento europeu como avançado, e acriticamente como progressista perante as formas de vida dos indígenas e dos africanos. Entende-se que a escravidão já existia antes séculos XVIII; e só lembrarmos que na Grécia Péricles, e na Roma Júlio César impérios do mundo antigo que tinham escravos. Porém, a escravização do mundo moderno, que foi financiada por grupos capitalistas de homens que se consideravam liberais como John Locke, rebaixou ao nível de inumanos dos deserdados da terra, no caso os africanos. Sobre o conceito de plantation, o autor nos diz:
Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada umas das primeiras manifestações da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de plantation e suas conseqüências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção. Em primeiro lugar, no contexto do plantation, a humanidade do escravo aparece como uma sombra personificada. De fato, a condição de escravo resulta de uma tripla perda: perda de um “lar”, perda de direitos sobre o corpo e perda de estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social. (MBEMBE, Achille. 2018, pag. 27)
A passagem citada nos diz que a escravidão foi um dos primeiros sinais da biopolítica. Aqui irei discordar do filósofo, acredito que ela exista para além da escravidão, pois a eugenia não busca somente a limpeza e a eliminação de certas raças, como também a limpeza religiosa. É outra coisa a biopolítica é vista de forma concreta e efetiva no século XVIII. No entanto, Foucault mostrará que ela era produzida de forma originária nos procedimentos de controle da sexualidade, mas encontram-se resquícios para além da modernidade, em outras formas de controle sobre a vida em outros momentos da história. Mas, a tripla perda descrita é condição incontestável da política de morte, em que perda do lar, do estatuto político e de autonomia sobre o corpo é condicionada por uma aparente neutralidade discursiva do sistema das leis. Não obstante, a condição para tal perda se dá no espaço do judiciário da democracia liberal, algo que não é apontada por Mbembe com uma expressão das forças de poder da burguesia capitalista e do neoliberalismo.
De fato a necropolítica desvela de forma mais enfática a ação política sobre os corpos dos negros, de uma sociedade representada dividida e fendida entre os ricos e pobres, que se legitima nas ações da polícia em território (no caso periferia) na qual estatuto de cidadania não é respeitado. E onde se prática toda e qualquer tipo de repressão e violência contra pessoas que tem sua vida subordinada a sub-cidadania. Podemos dizer a necropolítica é generalização das formas de repressão do Império, e dos colonizadores (no caso dos Estados Unidos e Europa), que por meio da barbárie entendem que levam o progresso aos lugares que eles querem que se mantenham subdesenvolvidos e dependentes da infalível da democracia imperialista.
ERRATA: Aqui esclareço dois erros presente no texto anterior intitulado “O nostálgico como ponto de fabulação da ideologia fascista II: suas contradições e o racismo.
Na ultima linha do primeiro parágrafo tem-se a seguinte passagem descrita “descriminação sobre a raça como parte do funcionamento político” aqui onde lê a palavra descriminação, leia-se termo discriminação por melhor contemplar a exigente semântica da passagem.
Em certa passagem do quinto parágrafo tem-se a seguinte passagem: “É, apesar de presente em várias aéreas de conhecimento…”. Aqui onde se lê aéreas leia-se áreas como mais adequado no sentido semântico e ortográfico.
Referência bibliográfica:
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 Edições, 2019.
Leonardo Vieira Rodrigues
Professor de Filosofia e História. Atualmente leciona em Guarulhos-SP para estudantes do Ensino Médio e Ensino Fundamental. É também pesquisador da Filosofia em temas como estética e política. É mestre em Estudos de Linguagem pelo CEFET-MG.
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