Estado Mínimo – por Leonardo de Magalhaens – #temporadadetextos

Fonte: Pixabay

         Tenho uma ameaça de despejo. Recebi um aviso em minha pulseira PP hoje. Depois teve aquele bloqueio hoje quando entrei no transporte. Ao passar o pulso a máquina apitou – crédito insuficiente. Precisei ir a pé mesmo. A Corporação precisa aceitar meus créditos.

         Preciso trocar meu visor. Não recebo os horários do ônibus no tempo certo. Ontem o visor marcava  três minutos para o próximo ônibus e na verdade ele passou em 1min33 e perdi quando chegava na esquina. Precisei esperar 17 min até o próximo. Cheguei na Corporação exatamente 6 min atrasado. Sei que vão descontar dos meus créditos.

         Os créditos ainda suficientes para dois dias de duas refeições cada. Ainda não tenho créditos para luz e gás cobrados pela Companhia. Não há como dar desculpas. Acabaram com a defesa do consumidor. Agora a Corporação promete, em seu pacote de serviços, defender o consumidor contra a Companhia. Esperem até a Companhia comprar a Polícia.

         Se você não tem amigos influentes nada pode fazer senão esperar e guardar seus créditos. Os bancos são todos da Corporação e só abrem crédito para os figuras da Alta. Aqui na Baixa não tem crédito se você não correr atrás.

         Minha noiva é da Limpeza. Ela ontem reclamou de atraso no depósito dos créditos. O irmão dela já foi político, classe que nem existe mais, e agora é gerente, da área de Reciclagens. E enquanto isso o serviço aumenta. E os funcionários são cortados a cada semestre. Por isso tanto lixo nas calçadas, tanto plástico nas sarjetas. E aquela campanha de reciclagem? Nunca mais deu em nada. A Companhia suja o que a Limpeza limpa. Ou tenta limpar.

         Ela precisou de uma ambulância. Mês passado. Até achou que era gravidez. Ou um tumor. Mas era um quase infarto. Gastou metade dos créditos da quinzena só para chamar a ambulância. E no hospital tudo é pago. E na hora.

         Não adianta reclamar tanto. Só gravo este diário no áudio para desabafar. Algum dia eu deleto. Meus tênis elétricos me torturam. Mas como comprar outro? Preciso do dobro de crédito para as refeições. Só se eu deixar de jantar.

         Ando meio sem atenção. Igual daquela vez em que fui quase atropelado pelo caminhão da Limpeza. É que são todos automáticos agora. Guiados por satélite e GPS. Se tivesse um motorista lá dentro o sujeito teria me visto. Ora, máquinas…

         Como se não bastasse, tem uma lista de material escolar pro Franz que no ano que vem vai prestar o Exame Nacional para ingressar em alguma faculdade. Todas pagas. Quem tem créditos paga. Caso contrário, acaba no serviço de Telemarketing da Corporação. Não desejo isso para o meu filho.

         No telão néon o anúncio de um novo videobook – colônias industriais na lua. Que lua que nada! Tem gente guardando créditos para viver em Marte… Claro que é muito caro. Poucos podem viajar. Só os bilionários investem em foguetes. Em breve todos eles vão dar o fora. Vida eterna e foguetes – é tudo o que eles querem.

         Não sei se existe, mas dizem que há um grupo de dissidentes, uns punks, que falam de uma coisa que já existiu, antes de ser tudo pago. Dizem que existia o público, o Serviço Público. E coisas chamadas Empresas Estatais. Acho que me lembro disso. Eu era jovem na época. Tenho mais de 30 agora.

         Agora em 2049 o mundo é assim. Ninguém fala em Estado. Quem tem a Corporação, e seus serviços, não precisa disto de Estado.  Aliás, a Corporação comprou o Estado. A Corporação é assim mesmo: comprou a todos nós.


#LeonardodeMagalhaens      

Poeta, escritor, crítico literário, revisor , tradutor, Bacharel em Letras pela Fale/UFMG

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