Inúmeras dificuldades foram encontradas para o desenvolvimento da pesquisa: a identificação dos próprios trajetos imigratórios, as abordagens para as entrevistas, o acesso aos dados governamentais, a capacitação dos entrevistadores e a delimitação do perfil dos imigrantes. Além desses aspectos, a própria condição transicional gera objeções sociocomunicacionais que dificultam o trabalho. Os contratempos[1] enfrentados pelos haitianos contribuem para uma interação, digamos não tão satisfatória, dificultando a aproximação. Muitos se veem ameaçados, acuados, constrangidos e receosos devido à confusão que vivem e, assim preferem o silêncio, o que exigiu dos pesquisadores maior esforço e cuidado durante as abordagens.
Muito embora a migração de haitianos para o Brasil seja fomentada pela opinião pública, à pobreza do Haiti e seu agravamento após o terremoto de 2010, a recente presença da diáspora haitiana no contexto brasileiro não pode ser compreendida a par de vinculações geopolíticas. O Brasil tem-se tornado uma das rotas de fuga da população haitiana. Essa condição de estreitamento entre as duas nações tem reflexo a priori pela liderança do Brasil em grande parte das missões de paz realizadas pela ONU no Haiti através da MINUSTAH[2]. Ainda de acordo com Moraes, Andrade e Mattos (2013, p. 101), “esse estreitamento, concomitante com às necessidades haitianas e aos interesses brasileiros, acontece devido à outras inter-relações”: presença de diversas Organizações Não Governamentais no Haiti; diversos projetos governamentais em seu território, com destaque para o auxílio na construção da usina hidrelétrica no Rio Artibonite; a promoção do programa Embrapa Hortaliças; ao mapeamento por satélite do território haitiano também pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Além do estreitamento nas relações geopolíticas e socioculturais, a realização da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas do corrente ano (2016) funcionam como atrativos para os haitianos. Como promessas de emprego, podem significar o envio de rendimentos para os familiares.
Segundo Germani (1974):
[…] as análises sobre as migrações devem considerar além dos fatores expulsores e atratores, as condições sociais, culturais e subjetivas, isso valendo tanto para os lugares de emigração quanto para os de imigração; caracterizando o processo imigratório Haiti-Brasil como histórico-estrutural. Com isso, aparenta, num primeiro momento o predomínio do caráter economicista nas relações discutidas, tem-se a impressão que as ações humanitárias também se pautam por interesses transnacionais de reconstrução, ou desenvolvimento “econômico”, pois não podemos negar a existência de interesses capitalistas em todas as nuances inter ou transnacionais na contemporaneidade. (GERMANI, 1974, p. 143)
Isso não significa dizer que as ações humanitárias em macro ou microescala não existam ou não sejam válidas. Cientes da existência dessas é que levamos em conta um caráter mais local/subjetivo/cultural. Pois, além de todas as dificuldades encontradas pelos imigrantes haitianos desde a sua fuga das tormentas ocorridas em sua nação, perpassando pelos tortuosos caminhos das suas rotas de exílio, até a chegada ao imaginado local de construção ou passagem para uma nova vida, o processo de pesquisa estende-se até o reconhecimento do processo de adaptação da linguagem, dos modos de vida, da alimentação e das condições religiosas e dos ambientes de chegada.
A vida não se faz somente de trabalho e alimentação, mas, de arte, música, diversão, educação, saúde e outras instâncias que fazem parte da subjetividade de um povo. Por isso destacamos, para reforçar essa visão, o trabalho realizado por órgãos públicos, ONGs e grupos de pesquisa de instituições universitárias, que inclusive ao levantar a necessidade de uma inclusão mais ligada às subjetividades dos haitianos, vem angariando melhores condições de vida para os imigrantes e estreitando o convívio de maneira que os haitianos se sintam mais acolhidos e possam assim contribuir de maneira mais significativa e satisfatória para as comunidades onde estão vivendo. As interlocuções dos pesquisadores com empresas e o poder público[3] vem ocorrendo em alguns municípios onde residem imigrantes haitianos.
Para tanto, o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão Direitos Sociais e Migração, do Curso de Serviço Social/PUC-MG, em parceria com o Grupo de Pesquisa Distribuição Espacial da População (Gedep), do Programa de Pós-graduação em Geografia/PUC Minas, ambos com sede na PUC Minas Coração Eucarístico, vêm pesquisando e realizando arranjos com as prefeituras municipais e a iniciativa privada, ações de capacitação dos imigrantes, produções que melhorem os diálogos e lhes mostrem direitos e deveres[4], assim como eventos os quais eles possam demonstrar sua arte, artesanato, linguagem, danças, folclore, religião, hábitos alimentares etc.! E em diálogo com secretarias do município de Contagem, por exemplo, descobriu-se o desenvolvimento de ações de integração dos filhos dos imigrantes às escolas Municipais do Ensino Fundamental e Médio, através da implementação do Programa Escola Sem Fronteiras (DECADI/SEDUC-Prefeitura de Contagem, 2016).
De acordo com Cogo (2014, p. 30), as ambivalências que marcam a visibilidade midiática e pública em torno imigração haitiana é geradora de ambiências (ao menos num primeiro momento) criminalizadoras e xenófobas. Ao mesmo tempo contribui para expor as repercussões da intervenção geopolítica do Brasil no Haiti e gerar uma indagação pública sobre a responsabilidade e atuação do Estado brasileiro nos processos de recepção e permanência desses imigrantes no país. Essa complexidade do processo imigratório dos haitianos para o Brasil envolve todas essas hipóteses e perspectivas, levando-nos a uma espécie de rizoma que envolve relações de poder econômico, solidariedade, cultura, política e linguagem.
Portanto, o trabalho não cessa por aqui. Ainda, há muito que realizar no sentido de buscar condições de vida mais dignas para os haitianos que residem hoje no Brasil, em prol de resultados mais universalizantes, isso justifica o trabalho do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão Direitos Sociais e Migração/Departamento de Serviço Social da PUC Minas, do qual somos integrantes.
REFERÊNCIAS
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BERNARTT, Maria de Lourdes et al. Diáspora Haitiana: Primeiros Estudos sobre Impactos para o Desenvolvimento Urbano e Regional nas Regiões Norte e Sul do Brasil. Cadernos Curu, v. 26, nº 1, p. 101-125.
COGO, Denise. Haitianos no brasil: comunicação e interação em redes migratórias transnacionais. Tema Central. Chasqui, nº 125, março, 2014.
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CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO. Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil. Grupo de Estudo Distribuição Espacial da População. Disponível em: <…>. Acesso em: 23 de julho de 2016.
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[1] Dentre os vários problemas enfrentados pelos haitianos que chegam ao Brasil, citamos: o seu tráfico; o receio da deportação; a burocracia, a dificuldade de acesso ao trabalho e à educação; o trabalho escravo; a violência sexual; o preconceito, a falta ou precariedade de moradia, dificuldade de sociocomunicação e os baixos salários.
[2] A Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) foi criada por Resolução do Conselho de Segurança da ONU, em fevereiro 2004, para restabelecer a segurança e normalidade institucional do país após sucessivos episódios de turbulência política e violência, que culminaram com a partida do então presidente, Jean Bertrand Aristide, para o exílio. O Brasil comanda as forças de paz no Haiti, que tem a participação de tropas de outros 15 países, mantendo na ilha um efetivo que varia entre dois mil quatro capacetes azuis da Marinha, do Exército e da Força Aérea.
[3] “A Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial (CPIR) de Belo Horizonte realiza programas, serviços e ações em parceria com ONGs e movimentos sociais para a amenização das desigualdades, do preconceito; promoção de saúde e educação e preservação da memória cultural e identidade étnica”. (FERNANDES & CASTRO, 2014, p. 103)
[4]DIREITOS sociais dos imigrantes: Haiti-Brasil / Organizadora: Maria da Consolação Gomes de Castro. Belo Horizonte: FUMARC, 2016. [56] p.:il.
Marlon Nunes é professor mestre em Estudos de Linguagens, escritor e psicanalista em Contagem-MG. Possui dois livros publicados: “A solidariedade vai até onde vai o interesse” e “O corpo hiper-real em Crash e a festa tecnológica: sedução, simulação e fragmentação”.
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