A (DES)IMPORTÂNCIA DO DINHEIRO – por Marcos Fabrício Lopes da Silva – #temporadadetextos

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     Como o dinheiro participa de praticamente todas as áreas da vida social, ele se constitui em objeto para diversas disciplinas das ciências sociais, cada uma delas focalizando-o a partir de ângulos específicos. Os economistas buscam encontrar fórmulas matemáticas que permitam prever e controlar o comportamento econômico no nível agregado, pressupondo a universalidade e a neutralidade do dinheiro. Os sociólogos voltam-se para os mecanismos institucionais e redes sociais que permitem ao dinheiro circular, interessando-se pela diversidade de usos e percepções sociais. Os antropólogos focalizam a origem, dogmas, rituais e costumes monetários em diferentes culturas, tentando detectar universalidade e especificidades culturais sobre o dinheiro. Os cientistas políticos voltam-se para o seu significado nas políticas governamentais, e os teólogos abordam os aspectos éticos e morais de seu uso.

      O dinheiro costuma aparecer relacionado a outros temas, tais como o trabalho, as desigualdades sociais, as relações de gênero, ou o amor. Os compositores brasileiros do início do século XX eram não raro descendentes de escravizados e assumiam uma posição quase política no fato de rejeitarem de forma um tanto consciente o trabalho e a ética a ele associada. Eles admitiam que eram preguiçosos e que tinham coisas mais nobres a fazer do que pensar em dinheiro. A preguiça era tida como uma atitude digna. Macunaíma, o principal personagem de um dos romances formadores da literatura brasileira, publicado em 1928, resultado de uma mistura racial entre brancos, negros e indígenas, nasce preguiçoso e é definido como “um herói sem nenhum caráter”. Suas primeiras palavras ao nascer foram “ai, que preguiça”. A preguiça é destaque no samba Caixa Econômica (1933), de Orestes Barbosa (1893-1966) e Antônio Nássara (1910-1996):

     “Você quer comprar o seu sossego/Me vendo morrer num emprego/Pra depois então gozar/Esta vida é muito cômica/Eu não sou Caixa Econômica/Que tem juros a ganhar/E você quer comprar o quê, hem?/Você diz que eu sou moleque/Porque não vou trabalhar/Eu não sou livro de cheque/Pra você ir descontar/Se você vive tranquila/Sempre fazendo chiquê/Sempre na primeira fila/Me fazendo de guichê/E você quer comprar o quê, hem?/Meu avô morreu na luta/E meu pai, pobre coitado/Fatigou-se na labuta/Por isso eu nasci cansado/E pra falar com justiça/Eu declaro aos empregados/Ter em mim essa preguiça/Herança de antepassado”.

      Temos aqui um exemplo em que a preguiça se torna um traço herdado e é transformada numa ética. O personagem masculino, provavelmente neto de um escravo e filho de um trabalhador, argumenta que o trabalho é inútil para as classes baixas. Todos sabem que, numa sociedade cada vez mais monetarizada como a do Brasil, desde aquela época precisava-se de dinheiro para satisfazer os desejos e as necessidades. Sendo difícil para os homens pobres ganharem muito por meio do trabalho manual, cresce a ideia de que o afeto é muito mais importante do que a riqueza. Essas composições do início do século XX são marcadas pela copresença da consciência de que o dinheiro é cada vez mais importante e da crença de que soluções afetivas e mágicas poderiam minimizar a escassez. Essa contradição aparece em alguns momentos nas canções de um mesmo compositor, como é o caso de Sinhô (1888-1930).

     Na marcha Amor sem dinheiro (1926), Sinhô discute a relação entre dinheiro e amor, argumentando pela impossibilidade de amar em toda plenitude sem as condições financeiras adequadas: “Amor, amor/Amor, sem dinheiro, amor/Não tem valor/Amor sem dinheiro/É fogo de palha/É casa sem dono/Em que mora a canalha/Amor, amor, etc./Amor sem dinheiro/É flor que murchou/São quadras sem rima/Me leva que eu vou/Amor, amor, etc./Amor sem dinheiro/É cana sem caldo/É sapo no brejo/Que canta cansado”. É interessante notar que o mesmo Sinhô lançou em 1928 outro samba, Que vale a nota sem o carinho da mulher, que vai no sentido contrário. Ele proclama a supremacia do amor sobre o dinheiro: ”Amor! Amor!/Não é pra quem quer/De que vale a nota, meu bem/Sem o puro carinho de uma mulher/(quando ela quer)”.

    Convém salientar que a demolição teórica do capitalismo como modo de produção começou com Karl Marx (1818-1883) e foi crescendo ao longo de todo o século XX com o surgimento do socialismo. Para realizar seu propósito maior de acumular riqueza de forma ilimitada, o capitalismo agilizou todas as forças produtivas disponíveis. Mas teve como consequência, desde o início, um alto custo: injustiça social e produção sistemática de pobreza. A fúria da acumulação capitalista alcançou os níveis mais altos de sua história. Segundo a ONG britânica Oxfam, de toda a riqueza gerada no mundo em 2017, 82% ficaram concentrados nas mãos dos que estão na faixa de 1% mais rica, enquanto a metade mais pobre – o equivalente a 3,7 bilhões de pessoas – não ficou com nada.

     O grau de irracionalidade e também de desumanidade do sistema falam por si. Vivemos tempos de explícita barbárie. “Muita gente sonha em ser rica e, vendo o dinheiro abrir tantas portas, entende que só assim a felicidade é possível, mas o chato de se ser respeitado e amado só pelo que se tem, é que não se é amado de verdade nem respeitado a não ser através destes bens. […] É uma ficção este poder. Não está em nós. Pertence ao que possuímos. Neste ‘cassino’ os bens imateriais não contam. […] Desprezamos os outros porque não são de nossa tribo, rimos de seu jeito de falar e de vestir porque não é o nosso, e julgamo-los por não terem os bens que nós consideramos bens. Então, matamos e nos matamos por dinheiro. Humilhamos os que não o têm. E inauguramos a cada dia novas guerras querendo poder e fortuna” – alerta a escritora e atriz, Elisa Lucinda, em seu livro Parem de falar mal da rotina (2010).

Marcos Fabrício Lopes da Silva

Marcos Fabrício Lopes da Silva

* Professor universitário. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.

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