O senso comum tentar normalizar e naturalizar os processos que viabilizam as desigualdades sociais em que individualizam as condições de pobreza no capitalismo, sistema que é excludente, cuja finalidade é o lucro e a defesa da sociedade privada. É como causa conseqüente, tem-se uma maioria de pessoas na pobreza, enquanto uma pequena parcela da população mundial é detentora da riqueza no sistema capitalista. Quando se acessa qualquer vídeo no youtube sobre finanças os coachs ou ‘especialistas’ em finanças, atribuem o fracasso da vida financeira dos mais pobres, ao fato de não saberem economizar ou investir, ou seja, individualiza-se um processo que é social e econômico. Aqui temos o eixo central desse texto que é compreender a culpa nos tempos contemporâneos.
A ideia de culpa coexiste entre as religiões, mas no cristianismo ela tem um papel central para manter o rebanho dócil aos preceitos dos poderes dos lideres religiosos cristãos. Os defensores do capitalismo insistem na concepção de que a condição de pobreza de um indivíduo é culpa inteira e exclusiva da pessoa, e não de um sistema. Na atualidade os coachs que são especialistas em nada, cuja atividade consiste em motivar ou orientar pessoas a produzirem mais. Nesse começo do século XXI vivemos uma cultura que hipervaloriza o culto ao corpo, a individualidade (no sentido de massificação do indivíduo) e a produtividade em excesso. Isso fica evidente em algumas palavras supracitadas nos discursos de influencers, de economistas neoliberais que tomaram todos os espaços das mídias, e tentam redefinir as coisas do mundo, essas palavras são: inovação, protagonismo, e o cocriar, que significa incentivar a pessoa a criar seu mundo, e com isso ser mais produtivas. Em outras palavras, reforçar a ideia de individualidade no viés neoliberal numa sociedade que se construiu a partir de várias formas de coletivos e corporações. O cocriar faz parte de um corpo de teorias que compõe as pseudociências, que são uma junção de várias práticas de conhecimentos místicos (como gnose) e de várias religiões pagãs, e de elementos do cristianismo como a culpa individual. Nunca se trabalha com a construção do socius (somos formados enquanto pessoa pelo meio social com quem compartilha, seja pessoas, fauna e flora). Essa teoria do cocriar está muito difundida em sites de youtube vendendo formulas para viver melhor utilizando fundamentações teóricas superficiais e sem sustentação aprofundada, uma nova auto-ajuda com roupagem dessa década que comercializa um ideal de vida melhor para as pessoas. Tudo isso, sem apontar como o sistema capitalismo e suas crises afetam a vida de todos, e cada ser como indivíduo e ser social. Não descrevem como a falta de acesso as condições mínimas para o exercício da cidadania como formação precária educacional, falta de oportunidade de emprego, saúde digna colocam o indivíduo em situações de problemas sociais, e mentais.
O cocriar é uma tentativa de resolver os problemas individuais de forma de rápida, esse mesmo tipo de lógica esta presente na “constelação familiar” que entroniza sobre os ombros dos indivíduos as causas do seu sofrimento. O cocriar enfatiza que a fonte do sofrimento está na forma da pessoa encarar e criar seu modo de estar no mundo. No entanto, o desejo, o sofrimento, e outros sentimentos que sentimos não dependem da forma dos meus pensamentos. Certas sensações que sentimos são manifestações do nosso corpo que agem de forma independente das ordenações da minha mente, ou da minha razão. A angústia que você possa sentir em algum momento da sua vida aflora de forma independente, tal como a depressão, ninguém escolhe sentir-se deprimido. É uma ilusão acreditar que temos controle sobre tudo que acontece com o nosso corpo. Aliás, é uma ilusão acreditar que a razão exerça algum controle sobre qualquer manifestação do corpo. Indo mais longe ainda, é uma ilusão pensar que controlamos as coisas que acontecem no mundo. Acredito que somos seres de afetos, afetamos e somos afetados pelas pessoas e as coisas com as quais nos relacionamos.
A tradição filosófica em parte faz uso da crença de que corpo e alma são coisas separadas, e independentes, sendo que a mente ou a razão tem uma valorização maior que as ações advindas do corpo. Só observar que as profissões de trabalho mais valorizadas são aquelas em que o cálculo mental é parte essencial do trabalho, como é caso das engenharias, dos economistas, e cargos de gerenciamentos. Já as profissões que fazem somente uso da força corporal são desvalorizadas, como no caso de trabalhadores braçais.
Filósofos como Descartes e Platão defendiam que a mente e distinta do corpo, e que as emoções e os desejos são menores que os edifícios construídos pela razão. Porém, outro filósofo moderno da mesma época de Descartes, Baruch Spinoza, via as coisas de forma diferente, para ele a mente ou o espírito era uma das manifestações do corpo. Outro filósofo que desconfiava da razão e colocava a vontade como algo que conduz a racionalidade era Arthur Schopenhauer. Ambos Spinoza e Schopenhauer inspiram Nietzsche na sua filosofia do martelo com suas críticas radicais à racionalidade socrática e a moral cristã, para ele a culpa é uma extensão da ideia de que vivemos num mundo de expiações, um mundo em que todas as coisas estarão sujeitas ao erro, um mundo corpóreo que é uma cópia de um lugar melhor denominado como além-mundo. Essa negação do mundo, do planeta Terra é um niilismo, que podemos denominá-la como uma axiologia (teoria dos valores), que é um valor que damos a essa coisa. Para Nietzsche reconhecer o atraso, a decadência dos valores morais associado ao cristianismo, é um passo para a criação de seus próprios valores que seria o niilismo positivo, como um caminho de superação dos valores decadentes. Todo esse percurso é para mostrar que a culpa é uma fabricação das religiões para domar e enquadrar a pessoa em seus dogmas.
Acredito que superar o sentimento de culpa é algo muito difícil em um mundo que insiste em enfatizar que os problemas sociais, e emocionais que as pessoas passam são frutos de uma culpa individual. Quando na verdade, a situação econômica e as questões emocionais são independentes de qualquer ação que a pessoa possa fazer. Com isso, faço uma paródia a uma passagem da música “Pequeno retrato do cidadão comum” de Belchior, que sem a culpa a vida fica leve.
Observação: No final da música a passagem parodiada foi “ Que a terra lhe seja leve”.
Enfim, é difícil mais devemos tentar a vida mais leve.
Leonardo Vieira Rodrigues
Professor de Filosofia e História. Atualmente leciona em Guarulhos-SP para estudantes do Ensino Médio e Ensino Fundamental. É também pesquisador da Filosofia em temas como estética e política. É mestre em Estudos de Linguagem pelo CEFET-MG.
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