A Convivência das Divergências – Por Marcos Fabrício Lopes da Silva – #temporadadetextos

Fonte: Pixabay

A violência ultrapassa os aspectos da criminalidade e mutilação física. Exigir que o outro pense, entenda o mundo e tenha atitudes como as minhas é uma forma agressiva de violência e deve ser questionada, refletida e extinta. No artigo Uma ideologia perversa, a filósofa e professora Marilena Chauí vem contribuir para a nossa discussão dizendo que “a violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade, como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos e inertes ou passivos” (Folha de S.Paulo, de 14/03/1999).

Sendo assim, os direitos da Comunicação não incluem apenas a comunicação na esfera pública (liberdade de expressão, de imprensa, o acesso à informação pública e governamental, a diversidade e a pluralidade dos meios de comunicação e dos conteúdos). Eles abrangem a produção e o compartilhamento de conhecimentos; os direitos civis, como a privacidade; os direitos culturais, como a diversidade linguística. Diante da concepção restritiva de reduzir a diversidade àquela de uma oferta supostamente auto-regulamentada pelo mercado, defendemos que não pode haver diversidade sem a diversidade de atores, fontes da criação e conteúdos de conhecimento, assim como de expressões culturais e midiáticas. O Direito à Comunicação é uma parte inseparável dos direitos civis e sociais.

Se não forem garantidas as condições políticas e econômicas, sociais e culturais que permitem aos seres humanos condições de exercer aquilo que Spinoza (1632-1677) chamou de conatus (esforço), é impossível que se chegue ao poder de transformação e de mudança que lhes permita continuar na luta pelo reconhecimento da dignidade humana de todos e de todas. Trata-se de criar condições para o desdobramento dos potenciais humanos. O reconhecimento desses direitos, incluindo o direito à comunicação, é o reconhecimento do direito de todos a participar na transformação da sociedade.

Bem recentemente, os economistas críticos colocaram em pauta a ideia de que o dinheiro também deve ser considerado como um “bem público”, para evitar que um punhado de traders (investidores do mercado financeiro) fique jogando com seus fluxos de caixa em detrimento de sociedades inteiras. A segurança financeira deve se transformar em um direito global, garantida por múltiplas instâncias. Tal mudança radical em relação à lógica da globalização neoliberal exige resgatar o primado da política, da soberania popular, o sentido da intervenção pública e do papel econômico do Estado. Ela também exige um salto qualitativo na participação cidadã no conhecimento e na gestão de importantes questões que se apresentam à sociedade.

O duplo princípio – direitos da Comunicação e filosofia dos bens comuns – inspira diversas formas de intervenção e de retomada da fala. A diversidade dos atores que compõem o movimento social é a garantia de sua riqueza. Os eventuais limites são aqueles relativos à natureza de toda polifonia. Tratam-se de espaços e processos nos quais estão envolvidos organizações e redes com múltiplos objetivos. Pensar a vida em democracia a partir das diferenças também envolve admitir que se a democracia e a verdade precisam uma da outra, elas também ameaçam uma à outra. Um paradoxo que Michel Foucault (1926-1984) resumia bem em um curso sobre o “autogoverno e o dos outros”: “Não há um discurso verdadeiro sem democracia. Mas o discurso verdadeiro introduz as diferenças na democracia. Não existe democracia sem discurso verdadeiro. Mas a democracia ameaça a existência do discurso verdadeiro”.

No livro Política para não ser idiota (2010), em diálogo com Renato Janine Ribeiro, o filósofo e professor Mario Sergio Cortella adverte: “No meu entender, democracia não é ausência de divergências mediante sua anulação. É a convivência das divergências sem que se chegue ao confronto. Costumo fazer uma distinção entre conflito e confronto. Conflito é a divergência de posturas, de ideias, de situações; confronto é a tentativa de anular o outro”. Dialogar é sentir-se dois e tocar com o nosso perfil, o perfil diferente da alma alheia. Descobrimos aí o heterodoxo, isto é, o outro que tem opinião discordante: hetero – outro; doxa – notícia, opinião. E aí nos lembramos de Giordano Bruno (1548-1600) que soltou de seu íntimo esta frase, pouco antes de ir pagar na fogueira o crime de pensar diferente: Per troppo variare natura é bella…

Somente a humanidade caminha, isto é, progride na contradição, no choque das ideias, em seu esclarecimento. “A educação democrática nos ensina que devemos tolerar a verdade do adversário e abolir a ideia de que só nós somos os detentores da verdade” – argumenta o jornalista Vivaldi Moreira (1912-2001), em Personagens & Situações (1986). O ideal democrático não se forja com afirmações somente, mas com a prática da tolerância e da compreensão. A democracia não é um dogma. É uma constante pesquisa de coisas melhores. Daí o princípio dialético da democracia, que consiste no embate das posições e oposições, isto é, na luta contraditória de cada dia, em enfrentar cada princípio contrário com o princípio de direito político de que toda opinião deve ser respeitada e combatida com as armas da tolerância e da compreensão.

Como fecho a tudo isto que vos disse, quero citar uma estrofe do poeta inglês John Milton (1608-1674), no Paraíso Perdido (1667): “Poder não há no céu ou na terra, que me possa tolher de contemplar com reverência e ternura aqueles que se elevaram ao cume da dignidade e da virtude”. Pois são estes valores que aprendemos a admirar através da cultura. A cultura é um direito de todos. De criar, ampliar o pensamento crítico, aprender a repensar. De transformar. O mundo precisa estar ciente de que não caminhará se não for coletivamente. Qualquer tipo de arrogância comprova descaso com o coletivo. 

Marcos Fabrício Lopes da Silva

Marcos Fabrício Lopes da Silva

* Professor universitário. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG.

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